Não lembro de ter feito amigos no pré-escolar, mas o primário começou bem. Numa escola particular, porém barata e numa parte menos afluente da cidade que já não era lá muito afluente. No começo minha mãe me levava no fusquinha azul, que depois foi roubado. Mas mesmo antes de alguém arrombar o portão da casa e levar o carro embora (sob as barbas do nosso cachorro adormecido e que depois não teve sequer a decência de aproveitar o portão aberto e fugir) eu já havia começado a dar meus primeiros passos solitários no mundo, deixando o casulo quentinho dos cobertores pela manhã e cobrindo o quilômetro que me separava da escola com sapatos de fivelinha, meias brancas, saia plisada azul marinho, camisa branca de tergal com botões na frente e o emblema do Centro Educacional costurado à mão no bolsinho do peito.
Quando chovia eu ainda ganhava carona da mãe; até porque a rua da escola costumava alagar ou encher-se da lama que descia dos barrancos da ladeira. As crianças que moravam nela desciam junto com a lama porque precisavam estudar e um dia, quem sabe “ser alguém na vida” e ter casa num lugar melhorzinho. Desciam quase da mesma cor do barro, o uniforme respingado de lama, os pés dentro de sacos plásticos presos à perna com elástico para não sujar os sapatos, preciosos talvez por serem únicos.
Karla Danielle era o protótipo de futura gatinha da classe, cabelão longo e o sorriso eternamente colado no rostinho bonito. Um dia me defendeu quando outras meninas tentavam me impedir de participar de uma brincadeira no recreio: “a corda é minha e ela é minha amiga, vai brincar sim!”. Me surpreendi porque há tempos a gente não comia merenda juntas, o que me fez concluir que talvez já não fôssemos mais tão amigas assim; daà eu não estar esperando que ela tomasse o meu partido. Pais separados, ela morava com a mãe e o irmão menor numa casa amarela de esquina, próxima à minha. Eu a chamava para tomar banho de piscina e lembro de um dia ter observado fascinada a menina submergir inteira antes do cabelo (os fios oleosos ficaram boiando na água). Mas tarde ela acabou se tornando mesmo a gata da classe, numa escola diferente (fomos separadas aos 11 anos quando começamos o segundo grau). Engravidou cedo, aos 16 anos já desfilando um carrinho de bebê. Ficou menos bonita com a idade, ganhou peso, a pele oleosa virou playground para a acne se espalhando no rosto cansado das noites sem dormir cuidando do pequeno. Da última vez que a vi ela estava empurrando a segunda filha numa dessas bicicletinhas de criança, num desses sábados onde a prefeitura fecha o tráfego de veÃculos em algumas ruas para o lazer dos moradores. Me viu de longe e me jogou um beijo. Nem tive como agradecê-la depois pela gentileza de me oferecer, no meio de tantas mudanças na minha vida e na dela, o mesmo sorriso de sempre.
Renata (ou Renatinha, por conta do tamanho diminuto) era a lÃder nata. Óculos, feições levemente orientais, “cara de fuinha” segundo a crueldade da minha mãe. Autoritária, mentora dos planos, representante de turma, conselheira, juÃza de brigas e pendengas, ela sempre tinha alguma coisa para dizer e, vindo dela, qualquer coisa se tornava importante e digna de atenção. Um dia correu o boato de que ela estava com piolhos. Depois das lendas criadas por adultos para aterrorizar os pequenos de que era preciso raspar ou queimar cabelos que adquirissem o parasita, as outras crianças mantiveram uma distância segura. No dia seguinte ela apareceu com o cabelo cortado curto, bem curtinho mesmo, mais curto ainda que o do irmão, Fabiano, que estudava na mesma classe e tinha o cabelo liso num corte tigelinha. Mas como se tratava da Renata ninguém teve coragem de tocar no assunto. Ela também nunca disse palavra, embora vez por outra levasse as mãos até a nuca como se esperasse encontrar um rabo de cavalo ali, para então recuar desconcertada. E o cabelo curto da Renatinha se tornou assunto banido sem que ela precisasse pedir, nem mesmo reconhecer o respeito implÃcito no nosso silêncio.
O Ivan era um loirinho troncudinho, com cara de alemão de meia idade (foi a melhor descrição que me veio à mente), olhos verdes miúdos, bastante tÃmido e que sentava na lateral direita da sala de aula - e me surpreendo por lembrar disso até hoje. Ele usava uma camisa uns dois números abaixo do que devia e a barriga estufava os botões quando ele se sentava; não sei se por descuido ou falta de dinheiro para uma nova. Até o sapato parecia com os de adulto, numa época em que praticamente todos os meninos (e as meninas não adeptas do sapato boneca) usavam conga, bamba ou kichute. Não havia bullying, no entanto. Ele era apenas diferente e isso não era considerado um crime. Um dia, em que minha mãe viria me buscar mas se atrasou, eu e o Ivan ficamos sentados no pátio da frente da escola, dividindo com precisão quase aritmética o conteúdo de um pacote de biscoitos e discutindo algo muito importante na época (hoje não consigo lembrar) e ele me fez companhia até o fusca azul surgir na esquina.
A Leila era a gordinha que sempre tinha as coisas mais legais. No primário, anos 80, ter um estojo de canetinha com 72 cores era garantia de popularidade. Eu achava um desperdÃcio que ela tivesse aquele estojo, já que não sabia desenhar e nem pintar. E pintava usando as canetinhas ao invés dos lápis de cor (o estojo de lápis de cor dela também era fenomenal), o que manchava a parte de trás da página do livro. Eu lamentava mentalmente ao vê-la esfregar a canetinha com força no desenho. Poucos meses depois do começo das aulas, metade das canetinhas do estojo da Leila já estava falhando. No meio do ano já era preciso comprar outro. Uma vez ela me deu, sem dizer nada, algumas canetinhas do estojo velho - as que ainda estavam boas. Não que meus pais não pudessem comprar; eu é que nunca vi razão para pedir. Mas fiquei tocada pela generosidade da menina, que simplesmente pediu que eu abrisse e juntasse as palmas das duas mãos, depositou nelas as canetinhas coloridas e saiu sem dizer nada. Além desse momento, que eu nunca soube explicar direito, nós nunca fomos especialmente amigas; mas aprendi que existem vários talentos no mundo e que não há nada de errado em não dominar alguns.
A Elaine parecia um boneca de porcelana; na beleza e, principalmente, na fragilidade. Cabelo loiro curto e encaracolado, rosto melancólico e pálido, olhos verdes enormes e fundos, saia um tanto mais longa que a das outras meninas, pernas esguias, mãos delicadas e ainda mais brancas que o rosto. Hoje em dia eu talvez pensasse que ela poderia ser modelo quando crescesse. Era sempre muito bem comportada, tirava boas notas nas provas, usava bolsa tiracolo ao invés de mochila e falava pouco. Tinha um cordãozinho fino de ouro de verdade e nunca tirava. Jamais corria na hora do recreio, o que interpretávamos por boa educação. Um dia uma moça muito bonita apareceu na escola, loira e pálida e melancólica, e essa moça pegou a Elaine pela mãozinha branca e a levou embora. Ela não apareceu para estudar no dia seguinte, nem no outro, nem na outra semana. Mais tarde algumas crianças ficaram sabendo através das mães que a tal moça era mãe da Elaine, e que ela não podia mais estudar porque estava muito doente. Elaine nunca mais voltou para a escola. Nem para aquela, nem para nenhuma outra.
Clayton era o arquétipo do moleque insuportável. Dentuço, tinha um tique nervoso que o fazia estalar os lábios constantemente, o que era irritante e um pouco ridÃculo. O tique também fazia com que ele levasse a cabeça para trás e depois para a frente, num movimento bastante parecido com o que certas aves aquáticas fazem quando andam - o que imediatamente lhe garantiu o apelido de Ganso (curioso eu ter tido um amigo chamado Pato no segundo grau e outro chamado Ganso no primeiro). Clayton colava chiclete no assento da professora, falava palavrão constantemente, metia-se em brigas, punha espelhos no chão para ver a calcinha das meninas. Hoje em dia acredito que o mau comportamento tenha sido a maneira que ele encontrou de sobressair à s piadas e apelidos, cortesia do probleminha neurológico. Ele sentava atrás do Ivan, e apesar do contraste de personalidades, eram os melhores amigos. Uma vez ele fez uma piada direcionada a mim e eu respondi com um “legal você fazer com os outros o que não gosta que façam com você!” e ele ficou calado e a gente se olhou em silêncio por uns segundos, daqueles onde tudo muda, e ganhamos um pelo outro um respeito mútuo que durou até perdermos contato.
Michel era o Pequeno PrÃncipe. Imaginou o livro, viu o filme? Então. Era ele. Além disso tinha uma daquelas réguas paraguaias
made in china, com desenhos que se mexiam quando você mudava o ângulo. Todas as meninas eram fascinadas por ele porque nunca ninguém tinha visto um menino tão bonito. Eu era fascinada pela régua. Mas reconhecia que sim, além de bonito ele era também educado e inteligente. Mas não exatamente sociável. As mais afoitas sentavam perto e puxavam conversa (que ele retribuÃa com silêncio ou monossÃlabos), ou sentavam na cadeira atrás dele e ficavam penteando com os dedos os cabelos perfeitos do menino - e eu tinha certeza que ele só permitia por preguiça de ter que lhes dirigir a palavra pedindo para parar. Eu tinha tudo em comum com o Michel, só não tinha coragem de falar com ele; minha arrogância não aceitaria receber a mesma resposta monossilábica e descuidada que ele oferecia à s outras. E assim fiquei sem falar com ele, até o dia em que ele chegou atrasado e sentou na única cadeira vazia da sala - do meu lado. Me senti extremamente desconfortável com a situação, até que a lâmpada se acendeu. Eu podia falar com ele de maneira digna, pedindo emprestada a borracha que ele estava usando (não tive coragem de pedir a régua). “Espera”, ele respondeu. Assim que terminou de usá-la passou a borracha, sem me olhar. ImpossÃvel não se apaixonar. A paixão súbita alimentou minha coragem: “posso pegar a régua emprestada, também?”. Ele levantou os olhos do caderno e me olhou e eu achei que fosse virar pedra. “Tá, pode pegar a régua também”. Peguei. E perdi vários minutos girando a dita cuja nas mãos e vendo as princesas e pôneis e florzinhas se mexendo no fundo cor de rosa, até que me ocorreu: “a sua régua é de menina”. Disse em voz alta e ele me olhou de novo, levemente espantado. Olhou para a régua e começou a rir. Eu ri também e desde então ele ria sempre que eu a pedia emprestada. “Régua de menina, né?”
No último ano do primário, bem, alguma coisa aconteceu. Deve ter acontecido, eu não lembro. Só lembro que de repente me vi sozinha, sem amigo algum - a não ser a Claudinete. Que quase não ia à escola; dava o ar de sua graça em classe umas três vezes por semana, no máximo. Eu não sabia então, mas fiquei sabendo depois que seus pais estavam tendo dificuldades para pagar a mensalidade. Eu ficava completamente perdida quando ela não aparecia. Todos os dias chegava cedo, me instalava na minha cadeira e passava a encarar a porta obsessivamente. Sempre um alÃvio do tamanho do mundo, como se um rebanho de mamutes tivesse se levantado das minhas costas, quando a cara morena, o cabelo curto e crespo e os braços magros segurando apenas um caderno, lápis e caneta (Claudinete não tinha mochila) entravam por ela. Mas as entradas foram rareando cada vez mais e se tornando cada vez mais frequentes os dias em que eu esperava em vão, a ansiedade escalando velozmente cada minuto. Quando a professora por fim se sentava na mesa iniciando os trabalhos do dia, eu relutantemente mudava o foco da porta para o caderno, dando minha esperança como perdida. Certa vez, uns quinze minutos depois do começo da aula, já absorta na leitura, senti a mão magra e gelada no meu braço quando minha amiga se atirou na cadeira, sem fôlego pela corrida para compensar o atraso, me iluminando a manhã naquele sorriso de dentes grandes e brancos.
A ele seguiram-se várias semanas de sumiço absoluto, onde eu fui aos poucos me dando conta de que ela não ia mais voltar. Não voltou. Depois que me conformei, aceitei sem reclamar o meu destino: passar o recreio sozinha na sala ou descer e vagar invisÃvel pelo pátio, pisando incerta o chão de pedrinhas, vendo a infância dos outros acontecer diante de mim e com a certeza resignada de que a minha havia começado a acabar no instante em que aprendi o que era a solidão.
Mudei de escola no ano seguinte.
Lolla, 7, pronta para entrar no palco na festa junina do Centro Educacional.